Cláudia Neolide e o ritmo do Son Jon, que vêm da alma
No meio do colorido e concorrido Desfile Son Jon Reveltiód, um concurso de grupos de romaria em Porto Novo, na ilha de Santo Antão, vimos uma mulher completamente entregue ao momento. Vibrava com os tambores, dançava com o rosto virado para o céu, olhos fechados como se a alma tivesse encontrado o seu lugar. Sacou o telemóvel, gravou uma selfie em vídeo, capturou aquele instante de pura alegria e guardou-o com o cuidado de quem embala uma lembrança preciosa.
Ela chamou a nossa atenção.
Era Cláudia Neolide, cabo-verdiana nascida em Itália nos anos 80, tempo em que muitas mulheres das ilhas (sobretudo das ilhas de São Nicolau, Sal e Boa Vista) emigravam para trabalhar como domésticas no país, em plena efervescência de emancipação feminina, em que as mulheres italianas foram em massa trabalhar no florescente indústria do vestuário. Foi nesse contexto que Claúdia chegou ao mundo, filha de pai etíope-italiano e mãe salense, com raízes em Boa Vista e Santo Antão.
Ainda bebé, com menos de um ano, foi enviada para a ilha do Sal, para crescer com a avó na zona de Hortelã, em Espargos, uma prática comum na época, quando as patroas italianas pressionavam as mães emigrantes a "enviar para as ilhas" os filhos pequenos. Ali, entre as mãos cuidadosas dos avós e os ritmos dos tambores de São João, Cláudia construiu a sua identidade cabo-verdiana. Aos 10 anos, voltou para Itália, depois mudou-se para a Holanda (atual Países Baixos), onde vive até hoje.
Mas, como ela diz, "para onde eu for, levo comigo esta vivência e identidade cabo-verdiana."
Durante o desfile, Claúdia dançava com tanto entusiasmo junto dos tamboreiros, gesticulando com as mãos como se tocasse um tambor invisível, que uma senhora, tocada pela sua entrega, lhe acabou por emprestar um de verdade. Bastaram alguns segundos para surgir aquele sorriso largo e autêntico. Cláudia tocou como se sempre o tivesse feito. Instalou-se no meio dos tamboreiros e dali não arredou pé. Nem mesmo quando o percurso terminou. O grupo, um dos mais antigos de Porto Novo, seguiu para o bairro de Alto São Tomé e continuou a celebração por mais quatro horas. Cláudia só parou quando a dona do tambor precisou de ir embora.
O som do São João sempre a acompanhou. Mesmo na Holanda, Cláudia celebra o santo popular todos os anos. Em Roterdão, os cabo-verdianos festejam o São João há mais de 50 anos, na famosa "Praçinha d´ Quebrod", um espaço que o governo holandês oficializou em homenagem à comunidade cabo-verdiana.
Este ano, porém, foi diferente. Cláudia veio de férias a Cabo Verde com um propósito especial: cumprir uma promessa antiga e viver, pela primeira vez, o São João na sua origem. Fez a tradicional peregrinação de 23 quilómetros, de Ribeira das Patas até à cidade de Porto Novo, com fé nos pés e alegria no peito.
No barco que a trouxe de São Vicente a Santo Antão, uma amiga prometeu-lhe integrá-la num dos grupos de romaria mais antigos da vila. E mais: que teria direito a traje tradicional da avó para o desfile. Promessa feita, promessa cumprida.
Cláudia Neolide tem um sorriso contagiante, daqueles que se espalham como música em romaria. Voltamos a encontrá-la na Peregrinação de Son Jon, um evento anual em que os 23 quilómetros de percurso são marcados por fé, música, dança e tradição. Cruzámo-nos com ela precisamente no momento em que se preparava para tocar a base onde a imagem do santo era levada aos ombros por quatro pessoas. Durante as mais de sete horas de caminhada sob o sol, mas o sorriso da Cláudia nunca se desfez. Dançou o Kolá, cantou, abraçou com carinho as mulheres mais idosas, carregou com orgulho a bandeira de Son Jon, abanando-a com toda a devoção e fé. Diz que fazer esta peregrinação é, para ela, a realização de um sonho.
A peregrinação culmina em exaltação junto à ermida ou igrejinha de São João, no Ribeirão de Igreja, no centro da cidade de Porto Novo. Ali, o religioso e o pagão misturam-se num só pulsar. Entre as rezas de padres e devotos, e o rufar frenético de centenas de tambores, tocados em uníssono por homens, mulheres e crianças de todos os estratos sociais, embalados pelo ritmo do Kolá Son Jon.
A chegada de Claúdia Neolide ao local foi marcada por alegria, comoção, fé e lágrimas. Uma felicidade difícil de traduzir em palavras. Depois de abraçar as pessoas ao seu redor, entrelaçou com força os dedos das mãos num gesto de entrega profunda, exprimindo toda a sua fé. Em seguida, aliviou os ombros, como num ato libertador, e deixou sair um largo, sereno e luminoso sorriso.
Décio Barros